1. Introdução
A geoeconomia tem se consolidado como um instrumento indispensável na formulação de estratégias de poder no cenário internacional contemporâneo. No contexto da competição sistêmica entre grandes potências, o emprego de mecanismos econômicos para alcançar objetivos geopolíticos tem se tornado um fator cada vez mais relevante, coexistindo e, em alguns casos, complementando abordagens militares tradicionais (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
Esse fenômeno reflete uma mudança significativa na forma como os Estados exercem sua influência, com a adoção de medidas que vão desde sanções econômicas e políticas comerciais protecionistas até a instrumentalização de investimentos e redes de suprimento globais.
O desenvolvimento de estratégias geoeconômicas tem permitido que países influenciem decisões políticas de outras nações sem recorrer à força militar direta, ao mesmo tempo em que criam dependências estruturais que reforçam sua posição hegemônica. No entanto, a geoeconomia permanece um campo conceitualmente difuso, sendo interpretada sob distintas perspectivas teóricas e analíticas.
Este ensaio visa explorar as definições contemporâneas do termo, oferecendo uma abordagem crítica e abrangente sobre seu escopo e aplicações. Inicialmente, será apresentada a origem e evolução da geoeconomia, desde sua concepção por Edward Luttwak até as interpretações mais recentes. Em seguida, serão discutidos os principais instrumentos geoeconômicos, incluindo sanções econômicas, barreiras comerciais, investimentos estratégicos, controle de cadeias produtivas e a instrumentalização de fundos soberanos e empresas estatais, com exemplos concretos de sua aplicação no cenário global.
Além disso, a análise abordará outros objetos de estudo da geoeconomia, como a relação entre política econômica e poder estatal, a influência das cadeias produtivas na segurança nacional, a instrumentalização da interdependência econômica para fins estratégicos, a reconfiguração da ordem econômica internacional, a formação de blocos econômicos e disputas geopolíticas, bem como o papel das políticas energéticas e a disputa por recursos naturais. Por fim, serão discutidos os desafios que a transição para estratégias econômicas impõe à governança global e as possíveis consequências dessa mudança para a ordem internacional.
2. Origem, Evolução e as Diferentes Definições
O conceito de geoeconomia foi amplamente disseminado por Edward Luttwak na década de 1990, no artigo "From Geopolitics to Geo-Economics: Logic of Conflict, Grammar of Commerce", publicado na revista The National Interest. O contexto era o fim da Guerra Fria e a emergência de um novo paradigma em que as nações substituíam a competição militar direta pela influência econômica como principal instrumento de poder. Ele argumentou que, com a redução dos conflitos militares entre grandes potências, os Estados passaram a utilizar instrumentos econômicos como sanções, barreiras comerciais e investimentos estratégicos para alcançar objetivos geopolíticos, mantendo, no entanto, uma lógica de conflito subjacente (LUTTWAK, 1990).
Luttwak afirmou que instrumentos tradicionalmente associados à geopolítica, como alianças militares e dissuasão nuclear, seriam progressivamente substituídos por ferramentas de natureza econômica. Nesse sentido, medidas como manipulação de taxas de câmbio, restrições comerciais, financiamento de infraestrutura em países estratégicos e aquisição de ativos críticos passaram a desempenhar um papel central na projeção de poder das grandes potências (LUTTWAK, 1990).
Outros autores, como o economista francês Pascal Lorot, destacam o caráter estratégico da geoeconomia no uso da economia e das corporações pelo Estado. Para o autor, a geoeconomia é definida como a utilização coordenada da economia por Estados como um instrumento de poder, substituindo ou complementando estratégias militares tradicionais. Ele argumenta que a geoeconomia envolve a manipulação de fatores econômicos, como comércio, investimentos e sanções, para alcançar objetivos geopolíticos sem recorrer à força militar direta (LOROT, 2009).
Sanjaya Baru, por sua vez, enfatiza o papel das mudanças estruturais e dos choques econômicos na redefinição do equilíbrio global de poder. Ele argumenta que os Estados utilizam políticas econômicas para reconfigurar suas posições estratégicas, aproveitando crises financeiras e transformações nos mercados globais para reforçar sua influência. Seu estudo foca no impacto das transições econômicas na distribuição do poder global, destacando como países emergentes, como China e Índia, têm se beneficiado dessas mudanças estruturais para expandir sua influência internacional e desafiar a ordem econômica liderada pelo Ocidente (BARU, 2012).
Scholvin e Wigell (2018), por outro lado, absorvem a geoeconomia como uma dimensão possível de grandes estratégias globais. Eles analisam o fenômeno no contexto da crescente interdependência econômica e do ressurgimento de rivalidades estratégicas entre grandes potências. Segundo os autores, a geoeconomia é utilizada não apenas como um complemento à geopolítica tradicional, mas também como um instrumento independente para moldar a ordem internacional. Seu estudo examina como Estados, especialmente aqueles com influência econômica significativa, empregam medidas como sanções econômicas, barreiras comerciais e financiamento de infraestrutura para alcançar objetivos estratégicos sem recorrer ao uso da força militar.
Blackwill e Harris (2016, p. 20) definem a geoeconomia como "O uso de instrumentos econômicos para promover e defender interesses nacionais e para produzir resultados geopolíticos benéficos; e os efeitos das ações econômicas de outras nações sobre os objetivos geopolíticos de um país. No entanto, os autores diferenciam a geoeconomia da geopolítica ao argumentarem que, enquanto a geopolítica tradicionalmente se concentra no uso da força militar e no controle territorial, a geoeconomia busca alcançar os mesmos objetivos estratégicos por meio de instrumentos econômicos.
Eles destacam que a geoeconomia envolve a manipulação de mercados, sanções financeiras, investimentos estratégicos e políticas de comércio internacional como formas de influência estatal. Dessa maneira, a geoeconomia não substitui completamente a geopolítica, mas se tornou um componente essencial da competição global, permitindo que Estados exerçam poder de maneira menos visível, porém igualmente eficaz, sobre adversários e aliados (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
Dessa forma, a geoeconomia se manifesta como uma ferramenta central da política externa, na qual Estados coordenam ações estratégicas para consolidar sua influência econômica globalmente. A imposição de tarifas seletivas, o financiamento de setores críticos e a manipulação cambial exemplificam sua aplicação na prática estatal.
Apesar das nuances entre essas definições, um elemento central persiste: a geoeconomia se configura como um meio de exercício de poder por meio da economia, ampliando os horizontes da influência estatal para além das capacidades militares. No entanto, a eficácia dessa estratégia pode ser limitada por fatores como resistência interna dos países-alvo, adaptação de mercados a novas condições e a interdependência econômica, que pode mitigar os impactos de medidas coercitivas.
3. Os Principais Instrumentos Geoeconômicos
Os Estados e organizações internacionais utilizam uma série de instrumentos geoeconômicos para moldar a dinâmica global e alcançar objetivos estratégicos. Entre os principais mecanismos, destacam-se:
3.1. Sanções econômicas
As sanções econômicas são utilizadas para pressionar governos e atores políticos a modificar suas políticas externas ou internas, atuando como uma ferramenta estratégica da geoeconomia. Elas podem ser empregadas para desestabilizar economias adversárias (IGNATYEVA, 2009), enfraquecer setores específicos (BLACKWILL; HARRIS, 2016) ou reconfigurar cadeias globais de suprimentos (SPARKE, 2024).
Um exemplo marcante foi a imposição de sanções econômicas contra a Rússia após a anexação da Crimeia em 2014, que restringiu seu acesso a mercados financeiros internacionais e reduziu investimentos estrangeiros. Da mesma forma, os embargos comerciais impostos ao Irã visavam enfraquecer seu setor energético e limitar seu programa nuclear.
Além disso, sanções têm sido usadas como substitutas de intervenções militares, refletindo a crescente importância da economia como mecanismo de influência geopolítica (BABIC; DIXON, 2022). A guerra comercial entre Estados Unidos e China, exemplificada pela imposição de tarifas sobre produtos chineses e restrições ao fornecimento de tecnologia avançada, ilustra como sanções econômicas podem ser utilizadas como instrumentos de contenção estratégica em disputas de longo prazo.
3.2 Política comercial e tarifária
Barreiras tarifárias e regulatórias são utilizadas como instrumentos de proteção econômica e influência estratégica, permitindo que Estados fortaleçam setores industriais essenciais enquanto limitam a concorrência estrangeira (IGNATYEVA, 2009). Além disso, elas podem ser empregadas tanto para proteger indústrias nacionais quanto para penalizar adversários econômicos (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
Um exemplo claro dessa prática é a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, na qual os EUA impuseram tarifas elevadas sobre produtos chineses em setores como tecnologia e manufatura para restringir sua competitividade global. Da mesma forma, a União Europeia tem utilizado barreiras regulatórias para limitar a entrada de produtos agrícolas de países emergentes, justificando as medidas com padrões ambientais e sanitários rigorosos (SPARKE, 2024).
Em disputas comerciais, essas barreiras são frequentemente usadas como forma de guerra econômica, como evidenciado pelo bloqueio comercial da Rússia à Ucrânia antes do conflito de 2022, que visava pressionar politicamente o governo ucraniano (KVINIKADZE, 2024). Seu impacto se estende ao investimento estrangeiro e à estabilidade financeira global (CLAYTON; MAGGIORI; SCHREGER, 2024), influenciando o equilíbrio do comércio internacional e as relações diplomáticas (KURECIC, 2025; CSURGAI, 2023).
Assim, tarifas e regulações comerciais tornaram-se uma alternativa frequente a intervenções militares, consolidando a geoeconomia como um dos principais eixos da política internacional (BABIC; DIXON, 2022). Além disso, elas podem ser empregadas tanto para proteger indústrias nacionais quanto para penalizar adversários econômicos (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
3.3. Investimentos estratégicos e infraestrutura
Os investimentos estratégicos e o financiamento de infraestrutura são instrumentos fundamentais da geoeconomia, permitindo que Estados ampliem sua influência global e criem dependências estruturais em países aliados (KIM, 2021). IGNATYEVA (2009) destaca que esses investimentos fortalecem laços comerciais e políticos, enquanto BLACKWILL e HARRIS (2016) ressaltam sua importância no controle de fluxos comerciais e cadeias produtivas, exemplificado pela Iniciativa do Cinturão e Rota da China (Belt and Road Initiative - BRI).
A BRI é um megaprojeto de infraestrutura e desenvolvimento lançado pelo governo chinês em 2013. O objetivo da iniciativa é conectar a China a diversos mercados globais por meio de investimentos em rodovias, ferrovias, portos e outras infraestruturas estratégicas, fortalecendo sua influência econômica e geopolítica em diferentes regiões do mundo..
SPARKE (2024) argumenta que essas iniciativas transcendem o aspecto econômico, funcionando como alavancas geopolíticas, enquanto SCHOLVIN e WIGELL (2018) apontam que essas parcerias geralmente envolvem condicionalidades políticas, ampliando o poder do investidor. Tais investimentos substituem estratégias coercitivas tradicionais, consolidando a geoeconomia como ferramenta de influência duradoura (BABIC; DIXON, 2022).
3.4. Controle de cadeias produtivas e dependência tecnológica
A supremacia em setores como semicondutores e inteligência artificial permite a imposição de restrições estratégicas sobre rivais econômicos (DING; SPENCER; WANG, 2024). Blackwill e Harris (2016) argumentam que o controle sobre tecnologias críticas representa um dos principais instrumentos da geoeconomia moderna, sendo usado para restringir o avanço tecnológico de adversários. Um exemplo dessa estratégia é a decisão dos Estados Unidos de barrar a China do acesso a semicondutores avançados, proibindo a exportação de chips de última geração e impondo restrições à cooperação entre empresas norte-americanas e fabricantes chineses. Tais medidas são uma forma de contenção econômica, impedindo que potências rivais desenvolvam autonomia tecnológica em setores estratégicos (SPARKE, 2024).
3.5. Diplomacia econômica e financiamento internacional
Instituições multilaterais, como FMI e Banco Mundial, desempenham papel fundamental na imposição de condicionalidades econômicas e políticas sobre países em desenvolvimento (BLACKWILL; HARRIS, 2016). Segundo IGNATYEVA (2009), essas instituições utilizam pacotes de financiamento como mecanismos de influência, exigindo reformas estruturais que favorecem interesses dos credores. BLACKWILL e HARRIS (2016) argumentam que o FMI e o Banco Mundial desempenham um papel essencial na difusão de políticas neoliberais, condicionando empréstimos a ajustes fiscais e privatizações. Essa forma de diplomacia econômica, no entanto, cria dependências financeiras, reduzindo a soberania dos países endividados (SPARKE, 2024). SCHOLVIN e WIGELL (2018) analisam como essas instituições operam dentro de uma lógica de geoeconomia estratégica, favorecendo determinados blocos econômicos. Esses mecanismos podem impactar a estabilidade política e social, doa países (KURECIC, 2025). Entretanto, o financiamento internacional pode ser utilizado como uma ferramenta alternativa ao uso da coerção militar, consolidando a economia como eixo central da influência geopolítica moderna (BABIC; DIXON, 2022).
4. Outros Objetos de Estudo da Geoeconomia
A geoeconomia não se limita ao uso de instrumentos econômicos como sanções, barreiras comerciais e investimentos estratégicos. Seu escopo é mais amplo e abrange diversas dinâmicas que moldam a ordem econômica global e a relação entre Estados. Esta seção explora os principais objetos de estudo da geoeconomia para além dos instrumentos utilizados, analisando como a política econômica influencia o poder estatal, o impacto das cadeias produtivas na segurança nacional, a instrumentalização da interdependência econômica, a reconfiguração da ordem internacional, a formação de blocos econômicos e o papel das empresas estatais e fundos soberanos como ferramentas de influência global. A seguir, apresentam-se alguns dos principais objetos de estudo da geoeconomia.
4.1. Política econômica e poder estatal
A inter-relação entre política econômica e poder estatal é um dos principais objetos de estudo da geoeconomia. Estados utilizam políticas monetárias, fiscais e regulatórias para fortalecer sua posição geopolítica e projetar influência internacional. Blackwill e Harris (2016) argumentam que a política econômica se tornou um instrumento essencial para moldar a ordem internacional, permitindo que países utilizem sanções, subsídios e controle cambial para obter vantagens estratégicas.
A China, por exemplo, adota uma política industrial agressiva, com incentivos fiscais e subsídios direcionados a setores como inteligência artificial, semicondutores e veículos elétricos, consolidando sua competitividade global (SPARKE, 2024). Nos Estados Unidos, a Lei CHIPS, que direciona bilhões de dólares para fortalecer a produção nacional de semicondutores, ilustra como políticas econômicas são utilizadas para reduzir dependências estratégicas (CLAYTON; MAGGIORI; SCHREGER, 2024).
4.2. Influência das cadeias produtivas globais na segurança nacional
A segurança econômica e nacional dos Estados está cada vez mais ligada à estrutura das cadeias produtivas globais. A dependência de um número restrito de fornecedores para insumos críticos, como semicondutores e minerais estratégicos, pode se tornar um fator de vulnerabilidade. Blackwill e Harris (2016) destacam que essa dependência é um dos principais desafios da geoeconomia contemporânea, pois afeta a autonomia produtiva e a capacidade de resposta dos Estados em crises globais.
Um exemplo é a restrição imposta pelos EUA ao fornecimento de semicondutores à China, com o objetivo de limitar seu avanço em tecnologia avançada e inteligência artificial (SPARKE, 2024). Além disso, a pandemia de COVID-19 evidenciou a fragilidade das cadeias produtivas globais, levando países como Japão e Alemanha a adotarem estratégias de reshoring para reduzir sua dependência da manufatura chinesa (KVINIKADZE, 2024).
A União Europeia, por sua vez, lançou o "European Chips Act", visando fortalecer a produção interna de semicondutores e diminuir sua dependência de fornecedores asiáticos (CLAYTON; MAGGIORI; SCHREGER, 2024). Essas ações demonstram como o controle das cadeias produtivas se tornou um fator central nas estratégias de segurança econômica e geopolítica.
4.3. Políticas Energéticas e Disputas por Recursos Naturais
A energia desempenha um papel central na geoeconomia, pois o controle sobre a produção, distribuição e comercialização de recursos energéticos pode moldar o equilíbrio global de poder. O petróleo, por exemplo, tem sido historicamente utilizado como instrumento de influência política e econômica. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) controla grande parte da oferta global, podendo manipular os preços e afetar economias dependentes da importação desse recurso. Durante a crise do petróleo de 1973, os países árabes membros da OPEP impuseram um embargo a nações ocidentais em resposta ao apoio dos EUA a Israel, demonstrando o impacto do petróleo como ferramenta de pressão geopolítica (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
Além do petróleo, a crescente demanda por minerais estratégicos, como o lítio, essencial para a produção de baterias e veículos elétricos, intensificou a disputa por recursos naturais. Na América do Sul, países como Chile, Bolívia e Argentina, detém as maiores reservas de lítio do mundo, atraindo investimentos estrangeiros e gerando tensões econômicas e políticas. A China, por meio de suas estatais, tem assegurado contratos de exploração na região, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia buscam diversificar suas fontes para reduzir sua dependência de suprimentos chineses (SPARKE, 2024).
Assim, a geoeconomia das políticas energéticas evidencia como os recursos naturais continuam sendo um fator crítico na definição das estratégias de poder global, influenciando desde sanções econômicas até disputas comerciais e diplomáticas.
4.4. Instrumentalização da interdependência econômica para fins estratégicos
A interdependência econômica tem sido amplamente instrumentalizada por Estados para consolidar esferas de influência. Isso pode ser observado na Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative - BRI) da China, que busca expandir sua influência por meio do financiamento de infraestrutura em países em desenvolvimento, criando laços de dependência econômica e política. Blackwill e Harris (2016) destacam que essa estratégia permite à China estabelecer influência duradoura sem necessidade de presença militar direta.
Além disso, a Rússia tem utilizado sua posição como grande fornecedora de gás natural para a Europa como meio de pressão política, condicionando o fornecimento às posições políticas de determinados países (SPARKE, 2024). A União Europeia, por sua vez, usa sua regulamentação de padrões ambientais e de mercado como ferramenta de influência sobre seus parceiros comerciais, impondo normas que afetam exportadores de nações emergentes e forçam mudanças estruturais em suas economias (KVINIKADZE, 2024).
O Japão também adota uma abordagem geoeconômica, utilizando investimentos em infraestrutura no Sudeste Asiático para contrabalançar a influência chinesa na região (CSURGAI, 2023). Esses exemplos demonstram como a interdependência econômica pode ser manipulada para obter vantagens estratégicas de longo prazo no cenário global.
4.5. Reconfiguração da ordem econômica internacional
A transformação da ordem econômica internacional ocorre por meio de medidas como sanções, tarifas e investimentos estatais. A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, marcada por tarifas protecionistas e restrições tecnológicas, é um exemplo claro desse fenômeno. Além disso, sanções impostas contra países como Rússia e Irã têm redefinido alianças econômicas globais, levando à criação de sistemas alternativos de pagamentos e acordos comerciais entre países sancionados.
Paralelamente, a China tem reivindicado reformas na arquitetura das instituições multilaterais, como o FMI, alegando que essas organizações ainda refletem a estrutura de poder do pós Segunda Guerra Mundial e favorecem desproporcionalmente as economias ocidentais (SPARKE, 2024). Nesse sentido, Pequim tem promovido instituições alternativas, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), para expandir sua influência na governança econômica global (KVINIKADZE, 2024). Essas iniciativas refletem a crescente fragmentação da ordem econômica internacional e a disputa por maior representatividade e controle sobre os fluxos financeiros globais.
4.5. Formação de blocos econômicos e disputas geopolíticas
A geoeconomia analisa a formação de blocos econômicos como uma estratégia de influência global, refletindo a necessidade de reconfiguração da ordem econômica internacional e a busca por maior autonomia financeira e comercial. Exemplos incluem a ascensão do BRICS como uma alternativa aos mecanismos financeiros tradicionais do Ocidente, promovendo o uso de moedas locais em transações internacionais e estabelecendo o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) para financiar projetos sem as condicionalidades do FMI e do Banco Mundial (SPARKE, 2024).
A União Europeia, por sua vez, tem utilizado sua integração econômica para fortalecer sua posição global, exemplificado pelo euro como moeda de reserva internacional e sua capacidade de impor regulamentações globais, como a taxação de carbono para importações de países terceiros (KVINIKADZE, 2024).
A rivalidade entre blocos econômicos, como a Parceria Transpacífica (TPP) e a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP), impulsionada pela China, evidencia como a geoeconomia molda as disputas geopolíticas contemporâneas ao reorganizar as cadeias produtivas e definir novas regras de comércio regional e global (BLACKWILL; HARRIS, 2016). A criação de zonas de influência econômica e o desenvolvimento de redes financeiras alternativas, como os sistemas de pagamento interbancário alternativos ao SWIFT, ilustram como a competição geoeconômica vai além do comércio, envolvendo também infraestrutura, tecnologia e governança financeira (BABIC; DIXON, 2022).
4.6. Empresas estatais e fundos soberanos como instrumentos de influência
Empresas estatais e fundos soberanos desempenham um papel essencial na consolidação de esferas de influência econômica. Blackwill e Harris (2016) destacam que esses mecanismos permitem que Estados adquiram ativos estratégicos no exterior, assegurando acesso a recursos naturais essenciais e infraestrutura crítica.
O fundo soberano norueguês, Government Pension Fund Global, é um dos maiores do mundo, investindo em uma ampla gama de ativos internacionais para garantir a estabilidade econômica do país a longo prazo. Da mesma forma, o Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita tem expandido sua influência adquirindo participações em setores estratégicos ocidentais, desde tecnologia até infraestrutura. A China também emprega seu fundo soberano, a China Investment Corporation (CIC), para adquirir ativos em energia, mineração e logística global, fortalecendo seu posicionamento geoeconômico e garantindo acesso a recursos críticos.
Esses fundos soberanos atuam não apenas como instrumentos financeiros, mas também como ferramentas de influência geopolítica, consolidando o poder dos Estados em mercados estratégicos ao redor do mundo, indo além da simples lógica do mercado para se tornarem instrumentos diretos da política externa dos Estados.
5. Conclusão
A ascensão da geoeconomia como uma dimensão fundamental das relações internacionais reflete a crescente preponderância da economia na estruturação do poder global. Ao substituir, em grande medida, a força militar pelo emprego de estratégias econômicas, a geoeconomia tornou-se um dos principais vetores da competição interestatal. A diversidade de instrumentos analisados neste estudo, desde sanções econômicas e barreiras tarifárias até investimentos estratégicos, controle de cadeias produtivas e a instrumentalização de empresas estatais e fundos soberanos, demonstra a amplitude do fenômeno e sua relevância na política internacional contemporânea.
A manipulação de mercados, a imposição de condicionalidades financeiras e o financiamento de infraestrutura são utilizados de forma coordenada para consolidar influência e moldar a dinâmica global de poder. Além disso, a competição por recursos naturais estratégicos, como petróleo e lítio, bem como a disputa pela reforma da arquitetura financeira internacional, reflete como a geoeconomia está redefinindo as estruturas de poder global. Embora o conceito continue em evolução, sua essência reside na instrumentalização dos fluxos econômicos como meio de coerção, influência e projeção de poder. Dessa forma, compreender a geoeconomia não é apenas uma necessidade acadêmica, mas também uma ferramenta essencial para interpretar o funcionamento das relações internacionais e os desafios da governança global no século XXI.
Referências
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